Nas últimas semanas, a Universidade Federal do Paraná (UFPR) decidiu lançar uma ofensiva à Polícia Militar do Paraná (PM-PR) por causa de um incidente ocorrido no dia 9 de setembro no prédio histórico da instituição.
Após dezenas de estudantes e ativistas agredirem palestrantes de viés conservador que participariam de um evento crítico à atuação do Supremo Tribunal Federal (STF), promovido por uma professora de Direito, a PM foi chamada. Quem a acionou foi o advogado Jeffrey Chiquini, um dos convidados para o evento, que precisou ficar trancado em uma sala para se proteger dos agressores.
A Reitoria da UFPR admitiu oficialmente que compreendia os “riscos à integridade física da comunidade acadêmica e participantes” do evento, mas mesmo assim não acionou a Polícia Militar, nem mobilizou qualquer estrutura de segurança. Após a ação para conter o tumulto, a PM entrou na mira da atual gestão da universidade.
Em uma série de notas, a Reitoria tem prometido medidas contra a corporação, alegando que policiais adentraram ao prédio sem terem sido acionados formalmente pela instituição e fizeram “uso desproporcional da força”. A reação enérgica da UFPR gerou forte repercussão e motivou até mesmo a aprovação de uma moção de apoio à PM-PR na Câmara Municipal de Curitiba (CMC).
A crítica principal da Reitoria tem a ver com uma suposta violação da autonomia universitária – argumento usado há anos por universidades federais para limitar a entrada da polícia a situações em que haja acionamento formal pela própria instituição.
Na prática, há um entendimento consolidado ao longo do tempo de que se estudantes, professores ou visitantes, por exemplo, acionarem a PM, a universidade precisa autorizar o ingresso dos policiais, o que pode gerar consequências graves à segurança pública.
Autonomia universitária pode ser usada para proibir a entrada de policiais?
A Constituição Federal, no art. 207, garante às universidades autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial. Mas o dispositivo não traz vedação à presença das forças de segurança. Em contrapartida, o art. 144 da Constituição estabelece que a Polícia Militar é responsável pelo policiamento ostensivo e pela preservação da ordem pública – ou seja, constitucionalmente pode agir em qualquer local público, inclusive universidades, para prevenir crimes ou conter situações de violência.
“De fato há uma tese defendida por alguns grupos na qual as universidades seriam territórios livres de ação da polícia, mas isso não tem base no nosso Direito. A Polícia Militar tem não só o direito, mas o dever de ingressar nessas áreas se entender que existe probabilidade ou que está sendo cometido um delito”, explica Alessandro Chiarotinno, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP.
O jurista aponta, entretanto, que algumas universidades possuem estrutura própria de segurança que pode ter um papel preventivo, mas isso não afasta a obrigação das forças de segurança de ingressar na universidade se houver riscos à integridade física ou ao patrimônio.
“Autonomia não pode significar licença para que crimes sejam cometidos. Então ela tem limites. É importante deixar claro que autonomia não é sinônimo de soberania”, prossegue Chiarotinno.
Em outras palavras, a autonomia universitária é funcional, não territorial. Isto é, protege liberdade acadêmica, de ensino, pesquisa e extensão e permite gestão administrativa e financeira própria, mas não dá à universidade poder de veto contra a atuação de órgãos de segurança pública.
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Limitação da entrada da PM a mandado ou flagrante delito
Na avaliação de Antônio Pedro Machado, doutorando em Direito Constitucional pela USP, o acionamento da PM por terceiros é legítimo, mas a atuação policial só se valida se houver flagrante delito ou mandado judicial.
“Não se trata de soberania territorial, mas de uma proteção conferida ao espaço universitário enquanto lugar destinado ao pluralismo de ideias. Então, sem mandado e sem flagrante, o ingresso das forças policiais nas universidades torna-se questionável”, pontua.
No caso em questão, ocorrido na UFPR, existia crime em andamento, já que um pequeno grupo estava cercado por dezenas de manifestantes em clima hostil, sob ameaças. “Havendo uma agressão dessa natureza no local, não há dúvida que existe um flagrante delito acontecendo. Em qualquer situação que alguém não consiga sair de onde está porque há ameaça ou violência, é um caso de polícia”, explica Machado.
STF deu força à tese polêmica da autonomia universitária, mas tratou de casos específicos
Em 2018, durante as eleições presidenciais, o STF reforçou a tese controversa de que o ingresso de policiais sem autorização da Reitoria viola a autonomia universitária. A decisão tinha relação com denúncias de propaganda eleitoral em espaço público e tratava especificamente de evitar ingerências políticas em meio o período eleitoral.
Em outubro daquele ano, coordenadores de cursos e professores fizeram aulas públicas em diversas universidades em que distribuíram folhetos a favor de Fernando Haddad, então candidato à presidência da República pelo PT.
Na época, juízes eleitorais emitiram mandados de busca e a apreensão de panfletos e materiais de campanha eleitoral em pelo menos 21 universidades. Em defesa dos professores, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, apresentou ao STF a ADPF 548, em que defendia que o uso político e eleitoral das universidades estaria dentro da liberdade de cátedra e da livre manifestação de ideias.
O STF concedeu medida cautelar impedindo o ingresso de policiais para a busca e apreensão de material eleitoral. Durante o julgamento, o ministro Luís Roberto Barroso – atual presidente da Corte – chegou a dar uma declaração que gerou forte repercussão, a de que “a polícia só pode entrar na universidade para estudar”.
Posicionamento da UFPR e da Polícia Militar
A Gazeta do Povo entrou em contato com as assessorias de imprensa da UFPR e da PM-PR. No caso da universidade paranaense, a reportagem questionou, entre outras questões, os motivos pelos quais a Reitoria considera que a entrada da PM, no dia 9 de setembro, violou a autonomia universitária – mesmo com a existência de flagrante delito. A universidade não retornou ao contato.
Da mesma forma, a reportagem contatou a PM paranaense questionando sobre a ação dos agentes no caso em questão e o entendimento da corporação quanto ao ingresso de policiais dentro de universidades federais. A PM não manifestou seu entendimento sobre uma possível violação da autonomia universitária, apenas enviou nota (leia na íntegra) a respeito da ocorrência, em que informa que foi acionada frente à “ameaça iminente à integridade física do palestrante e de seus acompanhantes”.